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Coisificação


"Era o casarão clássico das antigas fazendas negreiras. Assobradado, erguia-se em alicerces o muramento, de pedra até meia altura e, dali em diante, de pau-a-pique. Esteios de cabriúva entremostravam-se, picados a enxó, nos trechos donde se esboroava o reboco. Janelas e portas em arco, de bandeiras em pandarecos. Pelos interstícios da pedra, amoitavam-se samambaias e, nas faces de noruega, avequinhas raquíticas. Num cunhal, crescia anosa figueira, enlaçando as pedras na terrível cordoalha tentacular. À porta da entrada ia ter uma escadaria dupla, com alpendre e parapeito esborcinado."

O belíssimo e rico texto de Monteiro Lobato, que me faz associá-lo a lugar bem conhecido, descreve a decadência do que outrora fora um tempo imponente que se pensava  jamais acabaria e que só deixou uma estrutura ao sabor da corrosão do tempo e intempéries. Paralelamente, nos deixa uma mensagem subjetiva sobre as transformações que ocorrem e que são inevitáveis. Nos remete também à ideia de que aquilo que foi bom no passado pode não o ser mais hoje.

Com 8 bilhões de habitantes disputando bens escassos, derivados da natureza, a sobrevivência nunca foi tão acirrada. Desde os tempos mais remotos, quando ainda éramos coletores/caçadores e vivíamos em cavernas, dividir e se especializar na execução de tarefas de cunho laboral se tornou uma necessidade. As eras se passaram, as civilizações apareceram e se sofisticaram, em graus cada vez mais complexos de organização e interdependência,  e, hoje,  isso é um fenômeno global.

Fato é, que a única certeza que se tem é a da mudança-  que se tornou algo com intervalos de tempo cada vez menores. A cada nova geração de crianças que nasce,  junto, surge uma nova tecnologia que imediatamente torna a anterior obsoleta. Somos uma sociedade de consumo onde o meio se tornou um fim em si mesmo e nesse processo transferimos essa característica para tudo, inclusive, nós mesmos. 

Imagine a seguinte situação: você trabalha numa empresa, segue todas as diretrizes determinantes com o intuito de ser um profissional  "exemplar"; não somente isso, também procura executar suas funções com o maior desempenho possível e o faz com méritos.

Esse é o quadro. Então, o que se conclui? É a situação ideal que por competência indicaria que você deveria seguir um curso de ascensão profissional, certo? Seria, se não houvessem lugares onde isso de nada vale. Neles, o profissional, e, portanto, o ser humano por trás dele, não passa de mero objeto que se usa e quando se perde o interesse é descartado. Mas, sabemos que isso não é novidade, pois há uma tendência, em determinadas empresas, de mostrar à opinião pública uma imagem e, no entanto, sabe-se que na prática é outra coisa.

Sem contar o paternalismo que, pelo menos aqui no Brasil, é uma forma arcaica que o empregador ainda adota nas relações trabalhistas que se verifica, inclusive, em nossa atual legislação.

Nessa "filosofia" o trabalhador é contratado por um favor do patrão que lhe paga um salário com conotações de esmola e não numa verdadeira relação contratual de trabalho, com vínculo jurídico, estabelecendo direitos e deveres para ambas as partes- o empregador entra no termo ambas.

Evidentemente, neste tipo de relação, conhecido como negócio jurídico, se definem e se delimitam o que cabe a cada parte. Não há que se falar em favores, pois isso é uma herança maldita dos tempos do coronelismo. A insistência em modelos mortos demonstram o despreparo e o amadorismo que se esconde por trás de belas roupas e palavras bonitas, sobretudo, em programas de televisão que aparentam uma cobertura VIP, mas que são matérias pagas para adular os egos inflados e obesos de um empresariado predador.

Nesses dias, por exemplo, no porto santista, assistimos atônitos as chamas consumirem cinco armazéns de açúcar que operam 24 horas, 365 dias/ano e que não possui tempo hábil para devidas manutenções. Eu trabalho aqui e vejo como fazem as coisas, e,  isso, não é novidade alguma para nós. Mas, a ganância fala mais alto e se conduzem as coisas pelos falso raciocínio de que "se nunca aconteceu,  jamais ocorrerá". Essa é outra herança maldita do brasileiro.

É claro que esta mentalidade não é privilégio nosso, basta lembrar do problema enfrentado pelos EUA em relação às hipotecas e seus bancos que derrubou a economia mundial recentemente. Pura ganância. Lembro- me de um programa da Opra onde americanos estavam sendo despejados de suas casas e de uma combatente no Iraque morando em um carro. Aquilo me deixou perplexo.

Quando os homens se esquecem de que todo nosso legado evolutivo fez de nós a espécie dominante do planeta, justamente por se proteger pela estratégia da vida em sociedade, coisas como essas acontecem e somos reduzidos a lixo que se descarta, deflagrando as maiores mazelas de nossa existência. Dentro desta linha, li outro dia algo como: "precisamos menos de inteligência, pois já a temos de sobra, e mais de humanidade" que é o que está faltando ao mundo.

Penso que precisamos reformular nossa postura, de sociedade de consumo, para de consciência, sob pena de nos tornarmos uma vaga lembrança como "A casa da fazenda" de autoria do escritor brasileiro, pois decadentes, já nos tornamos a muito tempo.
Raniery

raniery.monteiro@gmail.com
http://mentesalertas.wordpress.com/

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