Avaliar com precisão o contexto social em que vivemos é uma
tarefa complexa. Fazer a leitura correta das circunstâncias da vida, o nosso
grande desafio.
Interpretar o real é faina perene que incomoda as pessoas de
uma forma em geral. Dão a impressão de que não gostam disso, que se sentem
desconfortáveis ao refletir, pensar ou raciocinar sobre os problemas e desafios
que lhes são apresentados.
No entanto, declinar dessa capacidade inata de elaborar
juízos pode piorar aquilo que já não está fácil. Varrer a sujeira pra baixo do
tapete só protela o inevitável. E o pior, pode desencadear processos que
fugirão ao controle. Definitivamente a inércia não é uma reação satisfatória.
Por outro lado, agir osmoticamente, negligenciando a atenção devida ao que é primordial,
como se fôssemos zumbis, é atrair sobre si um ônus pesado demais.
Prosseguindo, ao processarmos as informações captadas do
meio, desencadeamos processos de abstração concomitantemente com o
compartilhamento disso com os outros agentes desta estrutura social. Chamamos
isso de alteridade, que nada mais é do que a manifestação de nossa sociabilidade,
ou seja, de nossa natureza gregária.
Destarte, nossas interações sociais são de extrema
importância para o nosso próprio desenvolvimento e por consequência, nossa
existência. Tanto que, se ao nascer, fossemos abandonados, não atingiríamos
nosso total potencial. Veja a história das meninas lobo que corroboram com essa
ideia.
Em 1920 descobriram duas meninas que haviam sido criadas por lobos e se comportavam como tais. Elas caminhavam de quatro “patas” apoiando-se sobre
os joelhos e cotovelos para os pequenos trajetos e sobre as mãos e os pés para
os trajetos longos e rápidos. Eram incapazes de permanecer de pé. Só se
alimentavam de carne crua ou podre, comiam e bebiam como os animais, lançando a
cabeça para frente e lambendo os líquidos. Na instituição agiam como animais
selvagens e uivavam enquanto tentavam escapar. Uma delas morreu pouco mais de
um ano após ser encontrada e a outra se desenvolveu pouco mais do que do dia em
que fora achada.
Em resumo, é no outro que me encontro e me
estruturo enquanto indivíduo, estabelecendo uma condição de pertencimento, de sociabilidade,
de comunidade, o que me faz ter empatia e me identificar e, assim,
solidariamente nos desenvolvemos.
Embora, essa seja a primeira parte de uma realidade
múltipla, pode deflagrar outro processo que seria visto como negativo. Ao me
integrar a um grupo social, me identificando com ele, é possível que rejeite
qualquer indivíduo ou grupos que não façam parte do mesmo. Tanto é verdade, que
não teríamos inúmeras nações se todos nos identificássemos com todos. É verdade
também, que adequamos razoavelmente bem nossas diferenças no atual estágio das
civilizações, mas não é menos válido dizer que ainda estamos longe de resolver
tais questões.
E o que a devida interação tem a ver com toda esta
dinâmica social? Basta voltarmos no tempo da segunda grande guerra mundial e
das atrocidades cometidas pelo nazismo de Hitler e seu reich de mil anos que
entenderemos bem tal necessidade.
Ora, na Alemanha daquele momento, cada ato, ação e
atitude, que perplexou o mundo, fora autorizado com uma base legal, em um
Estado de Direito, dentro de uma democracia formal. No entanto, nenhum juiz,
servidor, soldado ou cidadão fora capaz de avançar mais do que a lei
determinava. Não cogitaram do absurdo, da bizarrice e da monstruosidade que
estava por trás da lei. Não entendiam que a lei serve ao homem e não este
àquela. Que a legalidade serve pra limitar o poder ao invés de investi-lo
ilimitadamente. Nada mais eram do que pessoas legalistas que simplesmente
seguiam ordens amparadas por leis.
Logo, suas consciências sequer eram afetadas a
despeito do holocausto que se seguia debaixo de seus olhos. Como alertou Hanna Arendt, era a banalização do mal. Acostumaram-se com o cheiro de gordura humana
queimada nos auto fornos dos campos de concentração e nem mesmo a morte de
crianças era capaz de comovê-las. Foram idiotizadas pelo sistema.
Mas, tudo isso mudou, pensamos, já que estamos em
pleno século XXI, certo? Errado. Tanto quanto naquele tempo, ainda hoje nos
deparamos com os mesmos inimigos da cidadania e dos direitos fundamentais. Os
legalistas ainda estão ativos e ávidos para se perpetuar no poder e impor seu
jugo às pessoas. Não cogitam do sentido, dos princípios, dos fins e valores por
trás da legalidade. Ignoram deliberadamente o sentido eminentemente social,
ético e moral de uma nova visão constitucional que nasceu exatamente da
brutalidade de seus análogos facínoras.
E o que é um Legalista? Por definição, é aquele que
observa rigorosamente o texto da lei, sem fazer nenhuma interpretação jurídica,
mas tão somente gramatical, sem atender à intenção e ao espírito do legislador.
Bastaria pararmos por aí pra entender que há inúmeros
pré-requisitos no que tange à interpretação da lei. Atente para o que acabei de
dizer: a lei deve ser interpretada e, melhor ainda, por quem domine
tecnicamente seu conteúdo, pois senão, corre-se o risco de anomalias
acontecerem. De fato, há toda uma metodologia a ser levada em consideração,
mas, grosso modo, basta saber que há uma hierarquia a ser observada em que pese
o valor normativo maior da Constituição que, então, passa a irradiar sobre os
demais ordenamentos os seus fundamentos e princípios.
Na Constituição brasileira, dentro do chamado
neoconstitucionalismo, o que se entende é a priorização aos direitos
fundamentais que, por sua vez, são fruto do princípio da Dignidade da Pessoa
Humana que norteiam nosso Estado Democrático de Direito, ou seja, é um sentido
de caráter axiológico efetivamente social. Desde seu preâmbulo até o fim, a
República Federativa do Brasil, em sua Constituição, se compromete com esta
ideologia.
No entanto, cotidianamente somos surpreendidos por
indivíduos ou grupos que se ressentem de tais valores, pois significa que
perderão parte de seu poder de disseminar a desigualdade por onde quer que
pisem. É desalentador assistir esta espécie de espetáculo bizarro que se nos
acomete diuturnamente, onde alguém, quando não decide violar deliberadamente o
ordenamento, lesando direitos tutelados assume posição de legislador, juiz,
polícia, e, isso, quando não o faz simultaneamente.
Recentemente onde trabalhamos, fomos surpreendidos
por uma decisão arbitrária de um chefe que decidiu “moralizar” o grupo através
de um regramento equivocado de determinada lei trabalhista. Foi uma imposição
unilateral que ignorou qualquer cuidado ou critério na sua deliberação. E o
pior, com grave erro de interpretação semântica básica do texto da lei, que se
diga, não é pacífica nem entre os doutrinadores.
De qualquer forma, o arbítrio se figura pelo fato
de que o rigoroso e moralista chefe desprezou o caráter social da lei em sua
conveniência. Simplesmente ignorou-se, entre outros, o elemento da desigualdade
e por consequência isonomia dentro da razoabilidade e proporcionalidade. Elevou-se
uma simples regra de empresa a patamar de lei ordinária que por sua vez se subordina
à lei maior, ou seja, a constitucional.
Enfim, o legalismo, esse obstinado e inflexível
apego à lei, é tão pernicioso quanto o seu descumprimento e, como diz Hely
Lopes Meirelles, pior que descumprir uma norma é quebrar um princípio, pois ao
fazê-lo se desconsidera todo um sistema estruturante.
No episódio citado acima, o que fica de lição, não
é necessariamente uma atitude perversa por trás do ato, mas a falta de ponderação
e interpretação adequada, não somente da norma, quanto de todo um contexto por
trás dos fatos. Com isso não se quer abrandar ou se fazer apologia a qualquer
tipo de transgressão disciplinar, mas se atentar para a proporcionalidade dos
meios, numa visão holística do todo, sem abandonar o caráter social e da
dignidade da pessoa humana.
Ora, não se pode ter uma visão meramente
mecanicista ou técnico-jurídica das relações, desconsiderando-se uma nova forma
de se ver o ordenamento, que deve evoluir e se manter conectado com a dinâmica
e complexa existência humana que, por sua vez, vem passando por transformações
radicais deflagradas por sua própria natureza cultural e social. Essa visão
reducionista não produz uma energia positiva, mas cria resistências bloqueadoras.
No fim das contas tanto a transgressão da norma
quanto seu legalismo radical afetam o meio produzindo distorções e
desequilíbrios, como em tudo na vida, aliás. Não será sob a força da chibata
que colaboraremos solidariamente, mas na produção de uma consciência dessa
necessidade, sob o convencimento de um dever que é elemento importante na
construção social. E isso se faz através da percepção dos valores sociais
contidos em tal elemento, evidentemente, não desconexos ou amputados de seus
direitos mais fundamentais e não por uma imposição mordaz.
Uma regra ou lei são o resultado de valores
decorrentes dos fatos da vida humana que se pretende priorizar, ou seja, há um
contexto e um sentido que se quer perpetuar e não uma ação mecânica se fazer pelo
fazer, num sistema idiotizante ou alienante.
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